Publicada em 10/12/2025 às 08h10
PORTO VELHO (RO) - A madrugada de votação que aprovou mudanças profundas na dosimetria dos crimes ligados à tentativa de golpe recolocou o Congresso no centro de uma controvérsia jurídica e política de grande proporção. Horas antes, Flávio Bolsonaro declarara existir “um preço” para que retirasse sua pré-candidatura à Presidência, em gesto interpretado nos bastidores como pressão direta sobre o Centrão. O projeto foi levado ao plenário logo depois, acelerado em ritmo incomum, sob condução de Hugo Motta e com etapas reduzidas de debate, instrução técnica e contraditório público. Esse encurtamento procedimental alimenta a tese de que o processo legislativo foi conduzido em ambiente de urgência artificial, produzindo um quadro que parte da doutrina chama de decisionismo parlamentar.
Essa compressão do rito, por si só, abre espaço para questionamentos constitucionais. A Constituição exige que propostas de impacto institucional significativo sejam debatidas de forma ampla, em comissões, com parecer técnico e com a participação de minorias. Quando essas salvaguardas são suprimidas, surge o risco de vício formal, já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal em diversos precedentes. Mas, no caso específico da nova dosimetria, há um segundo eixo de inconstitucionalidade possível: o vício material.
A proposta, construída para reduzir penas de condenados pelos atos de 8 de janeiro — incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro — avançou com apoio quase umânime da bancada federal de Rondônia: Maurício Carvalho, Lúcio Mosquini, Cristiane Lopes, Silvia Cristina, Rafael Fera, Fernando Máximo e Coronel Chrisóstomo votaram a favor. Thiago Flores não registrou voto, ausente durante a deliberação. A postura da maioria da representação rondoniense foi de adesão automática, sem manifestações públicas que indicassem preocupação com os efeitos jurídicos da aceleração ou com o impacto institucional da proposta.
É nesse cruzamento entre forma e substância que o debate sobre a constitucionalidade se torna mais complexo. A suavização das punições aplicáveis aos crimes contra o Estado Democrático de Direito — somada à facilitação da progressão de regime e à redução de pena em atos cometidos em contexto de multidão — pode produzir aquilo que parte da doutrina classifica como proteção insuficiente de bens jurídicos essenciais. O núcleo do problema está em saber se o Legislativo, ao flexibilizar punições para crimes institucionalmente gravíssimos, estaria entregando uma tutela penal inferior àquela que a Constituição exige para garantir a continuidade do regime democrático.
Nesse ponto, ganha centralidade o princípio da proibição de proteção deficiente, formulado com rigor por Lenio Streck. Em seu artigo “A dupla face do Princípio da Proporcionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal”, publicado na Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (nº 22, 2005, p. 163-187), Streck afirma que a proporcionalidade é violada não apenas quando o Estado age em excesso, mas também quando falha em proteger adequadamente direitos fundamentais. Em suas palavras, isso ocorre “quando o Estado-juiz não protege suficientemente os direitos fundamentais dos demais cidadãos”, situação que fragiliza a própria ordem republicana. Nesse cenário, torna-se pertinente relacionar o caso atual à própria lógica do princípio da proibição de proteção deficiente. Embora formulado por Lenio Streck em contexto distinto, o núcleo teórico permanece válido: o Estado viola a proporcionalidade quando reduz de forma injustificada a tutela necessária à preservação de bens jurídicos fundamentais. Aqui, ao atenuar a resposta penal a crimes destinados à destruição do Estado Democrático de Direito, o Congresso pode ter produzido exatamente esse tipo de insuficiência protetiva, fragilizando o nível de salvaguarda institucional que a Constituição exige. A aplicação da doutrina, portanto, não é deslocada; ela ilumina com precisão a tensão entre o dever de proteção estatal e a escolha legislativa de suavizar punições em um dos campos mais sensíveis da ordem constitucional.
Embora o estudo trate de outro contexto, sua lógica se aplica de forma evidente à discussão atual: se o Congresso reduz a tutela penal de crimes cometidos contra as instituições democráticas, abre-se a possibilidade de que o Supremo considere haver proteção deficiente, configurando inconstitucionalidade material. Somado ao vício formal potencial decorrente da aceleração do rito, o projeto pode se enquadrar no que alguns constitucionalistas chamam de limbo da inconstitucionalidade, em que forma e conteúdo se contaminam, criando um vício híbrido.
A crítica se amplia quando se observa a extensão do impacto do texto aprovado. Em vez da soma das penas aplicáveis aos crimes de tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático, prevalecerá a pena mais grave. A progressão de regime é facilitada, e aqueles que participaram dos atos em contexto de multidão, sem liderança ou financiamento, podem ter a pena reduzida de um terço a dois terços. Para condenados já em execução de pena — incluindo o ex-presidente — isso pode representar redução drástica no tempo de cumprimento em regime fechado. Esse efeito, porém, extrapola o universo dos envolvidos em 8 de janeiro. Como observou o jornalista Leonardo Sakamoto em sua coluna no UOL, nesta quarta-feira, ao reescrever regras gerais de dosimetria e progressão, o Congresso abriu espaço para que presos comuns, condenados por crimes que nada têm a ver com ataque às instituições democráticas, também se beneficiem da flexibilização criada para acomodar pressões políticas específicas. Essa expansão involuntária do alcance da norma escancara uma consequência social relevante: ao tentar aliviar a prisão de figuras politicamente influentes, o Legislativo acabou alargando a porta de saída do sistema prisional como um todo, reduzindo de modo generalizado a tutela penal e reforçando o argumento de proteção deficiente.
LEIA EM:
Para se livrar de Flávio, centrão abre porta da cadeia a criminosos comuns
A opção da bancada de Rondônia, salvo a ausência de Thiago Flores, foi de apoio integral à remodelagem penal. Maurício Carvalho, Mosquini, Cristiane Lopes, Silvia Cristina, Fera, Máximo e Chrisóstomo aderiram a um projeto que, além de favorecer condenados, suprime etapas essenciais de controle legislativo. Não houve, por parte desses parlamentares, qualquer ponderação pública sobre os riscos institucionais envolvidos. A ausência de debate agrava a impressão de que o voto foi guiado mais por alinhamento político do que pela análise constitucional adequada a matérias dessa magnitude.
Assim, o episódio revela não apenas uma postura política, mas uma escolha de método — e método, no direito constitucional, importa tanto quanto resultado. O Supremo Tribunal Federal provavelmente será provocado a se manifestar, e, diante do conjunto dos fatos, poderá avaliar tanto o rito quanto o mérito sob o prisma do controle de constitucionalidade. Se a tese da proteção deficiente for acolhida, o projeto corre risco real de invalidação, ainda que já tenha produzido efeitos concretos na execução das penas.
Ao fim, a votação não será lembrada apenas pela intenção de aliviar condenações específicas, mas pela forma como uma parcela significativa da bancada rondoniense decidiu participar de um processo legislativo acelerado, juridicamente sensível e potencialmente incompatível com a robustez constitucional que se espera do Parlamento. O saldo institucional não é trivial: quando a política pressiona a Constituição para atender a circunstâncias do momento, a democracia sempre paga o preço.



Comentários
Seja o primeiro a comentar!