Publicada em 11/12/2025 às 11h37
O podcast Resenha Política, apresentado pelo jornalista Robson Oliveira, recebeu o artista popular Samuel Bera, conhecido como “beiradeiro”, em entrevista gravada com apoio da CES Brasil e veiculada no YouTube, no site Rondônia Dinâmica e na TV Rema. Ao longo da conversa, o músico reconstruiu sua trajetória desde a infância nos seringais do Baixo Madeira até a atual turnê nacional do projeto “Paneiro do Norte”, pelo programa Sonora Brasil, do Sesc, além de explicar o simbolismo de uma camisa ligada ao líder sul-africano Nelson Mandela e a formação do chamado “movimento beiradeiro” em Porto Velho.
Logo na abertura, Robson convidou o público a acompanhar o conteúdo nas diferentes plataformas. “Vá lá no nosso canal no YouTube, Resenha Política. Assista nossos podcasts terças e quintas pelo site Rondônia Dinâmica. E no sábado e domingo, às 23h, na TV Rema”, orientou. Em seguida, apresentou o convidado como “uma artista popular, hoje de Rondônia”, identificado ao longo do programa como Samuel Bera ou Samuel Beiradeiro.
Questionado se teria nascido “na beira do rio”, Samuel relatou que é natural de Humaitá, no Amazonas, e que sua família vem de um lugar chamado Seringal do Mirari, na região do Baixo Madeira. Segundo ele, o local aparece na própria origem da cidade de Humaitá. “Álvaro Maia, que foi quem fundou a cidade de Humaitá, primeiro ponto que ele chega quando vem nesse processo de colonização aqui no Baixo Madeira, ele apoita no Seringal do Mirari, que é de onde eu vim”, explicou. Samuel afirmou que, diante de conflitos entre o grupo colonizador e as etnias indígenas da região, “os indígenas expulsaram praticamente eles” e a comitiva teria subido o rio até a área onde se estabeleceu Humaitá.
O artista contou que passava férias no seringal, enquanto a família residia na cidade, e relacionou essa vivência ao início da relação com a música. Ele lembrou as redações escolares sobre as férias, quando estudava no Colégio Dom Bosco, em Humaitá, graças a uma bolsa obtida por intermediação de um padre. Enquanto colegas mencionavam viagens a praias e até à Disney, ele optava por descrever o cotidiano beiradeiro: “Eu contava que eu ia pra lá, caçava com meus tios, pescava, tomava banho de rio, jogava bola no campo de barro. E de noite eu via os forró de beiradão”. Samuel detalhou que tios eram músicos e tocavam em casas de palha, em chão de barro, com cavaquinho, pandeiro e triângulo, varando a noite em apresentações. Um tio, Luiz Pereira, era citado como figura central nessa memória, mesclando aboios e versos. Mais tarde, o músico identificou nessas práticas a influência de migrantes nordestinos na Amazônia, herança que associa ao avô e a outros antepassados.
Ao migrar para Porto Velho na adolescência, Samuel relatou o encontro com o movimento hip hop, que descreveu como uma “escola” fora do ensino formal. Segundo o artista, foi nesse ambiente que passou a compreender melhor a organização da sociedade e a própria condição de classe. Ele lembrou questionamentos pessoais da época, relacionados à falta de recursos e de acesso a bens de consumo, como roupas e tênis, e disse que o hip hop o ajudou a deslocar a culpa da família para uma leitura mais ampla da estrutura social. Samuel ressaltou a importância da estética do movimento na aproximação com a juventude periférica. “O jovem da periferia, no primeiro momento, ele nem assimila o discurso de negritude, de identidade, ou então de compreender quem é ele na sociedade. No primeiro momento ele vê a estética, aquela roupa larga, o boné, que o jovem, é assim que tu capta ele”, explicou. Ele também destacou a relação do breakdance com outras matrizes culturais brasileiras e disse que a dança, no contexto local, incorporou elementos da capoeira.
Na sequência, a entrevista entrou na discussão sobre ancestralidade, sincretismo religioso e o simbolismo da camisa usada por Samuel no estúdio, apresentada por Robson como um traje com forte representatividade da negritude. O artista afirmou que “sempre foi guiado pelos ancestrais” e relatou sua crença em rezas, banhos de arrueira e na atuação de espíritos, mencionando a avó como rezadeira, benzedeira e parteira. Questionado, definiu-se como “totalmente” sincrético e disse acreditar “muito no que vem da floresta”. Samuel afirmou que aquela camisa nunca havia sido tema de relato público e disse que decidiu usá-la especificamente após o convite para o podcast.
Segundo ele, a peça foi originalmente presenteada por Nelson Mandela ao ex-deputado federal rondoniense Eduardo Valverde, à época presidente da Comissão de Relações Internacionais da Câmara dos Deputados, num contexto de viagem oficial à África com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no primeiro mandato. De acordo com o músico, Mandela mantinha a prática de presentear autoridades, artistas e ativistas com camisas produzidas por mulheres de seu clã, o Mandimba, que teriam na confecção uma fonte de renda. A etiqueta da peça usada por Samuel traz a inscrição “The Office Presidency South Africa”, segundo relatou. Na narrativa, o artista contou que Eduardo Valverde recebeu duas camisas e, de volta ao Brasil, decidiu repassar uma delas ao próprio Samuel, chamando-o pelo nome da banda – Quilomboclada. “Ele falava meio gaguejando, né, ele falava, ‘ô, Quilomboclada, ganhei duas camisas aí do Nelson Mandela [...] vou te dar uma’”, disse o entrevistado.
Samuel afirmou que, na época, outros militantes duvidaram da história, pois ele não chegou a aparecer publicamente com a camisa. Mais tarde, já fora da rotina musical, trabalhou na prefeitura e perdeu contato com o parlamentar, que acabou falecendo. Somente cerca de 20 anos depois, segundo o relato, reencontrou a companheira de Valverde, Mara Valverde, nos corredores da Assembleia Legislativa e decidiu relatar o episódio. De acordo com Samuel, Mara confirmou que haviam sido duas camisas e o orientou a buscá-las. “Quando foi no outro dia cheguei lá, ela estava com as duas camisetas, me entregou”, contou. Ele descreveu que chorou ao chegar em casa e reforçou a importância simbólica da peça, que associa simultaneamente à liderança de Mandela e à trajetória política de Eduardo Valverde. O artista afirmou que usa as camisas apenas em ocasiões especiais e que pretende vestir a peça no show de encerramento da turnê em Salvador, na Bahia, no Sesc Pelourinho.
Na parte em que trata da circulação nacional de seu trabalho, Samuel explicou que o Sesc Rondônia inscreveu seu projeto no programa Sonora Brasil, que definiu como “o maior programa de circulação musical do Brasil”, com mais de 36 anos de existência e histórico de revelar artistas em nível nacional. O show atual, intitulado “Paneiro do Norte”, reúne três artistas: a banda Quilomboclada, o músico Bado e a artista Sandra Braids. “A junção dos três chama-se Paneiro do Norte”, explicou. Segundo ele, o grupo vem circulando pelo país desde 2024, com apresentações nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Norte e Nordeste, num total de 56 cidades. Samuel destacou que o repertório é integralmente autoral, requisito do programa. “O Sesc só trabalha com trabalho autoral”, afirmou, apontando a política de valorização da criação própria. Ele informou que o circuito passa por estados como Ceará e Pernambuco e que a etapa atual será finalizada com apresentações em Salvador e Feira de Santana, na Bahia.
O artista adiantou que, em novembro, o projeto terá encerramento em Porto Velho, no Centro Cultural do Sesc, com um evento que deve incluir o lançamento de um documentário produzido pelo Sesc Brasil sobre o Paneiro do Norte. O filme, segundo ele, já foi exibido previamente em Iguatu (CE) antes de um show, retratando a cultura de Porto Velho, o conceito de beiradeiro e a trajetória dos três artistas. Samuel mencionou que o documentário aborda, por exemplo, a história da música em Rondônia, narrada por Bado, além de elementos da periferia trazidos por Sandra. O encerramento na capital rondoniense deve reunir exibição do documentário e apresentação musical.
Provocado por Robson sobre o apoio à cultura em Porto Velho, Samuel afirmou que há uma “mudança significativa no movimento cultural” quando os artistas são fomentados por editais de incentivo, especialmente a partir da descentralização de recursos do governo federal. Segundo ele, quando editais chegam, é perceptível uma “explosão de produção” em áreas como música, audiovisual e cinema. O artista citou como exemplo produções de Rondônia premiadas em festivais, mencionando um filme local agraciado com prêmios em evento em Gramado, no Rio Grande do Sul, segundo sua lembrança. Ele também relatou que, com o fomento, passaram a emergir artistas de municípios como Ariquemes, Vilhena, Ji-Paraná, Costa Marques e outros, que antes não tinham visibilidade.
Samuel defendeu que o investimento em cultura movimenta uma cadeia produtiva ampla. Para ilustrar, citou show recente do músico Bado no Mercado Cultural, em Porto Velho. De acordo com o relato, a prefeitura teria contribuído com estrutura de som e iluminação, e empresários com patrocínio de cachê. A partir disso, o evento teria mobilizado lojas de roupas, salões de beleza, serviços de gastronomia, técnicos, músicos, espaços de ensaio e empresas de som, além de trabalhadores de bares e restaurantes. Ele relatou conversa com um motorista de aplicativo que questionou a destinação de recursos para a cultura, e respondeu apontando a circulação de dinheiro gerada por um único espetáculo, desde a corrida de aplicativo até o consumo de comida e bebida no local do show. Samuel citou ainda um dado que atribuiu à Fundação Getúlio Vargas, segundo o qual “em cada quatro reais que você investe na cultura, o poder público, ele volta, em imposto para o poder público, quase oito”. A partir desse argumento, defendeu que a cultura é um tipo de investimento que necessariamente envolve outras pessoas e setores, não ficando centralizado em um único beneficiário.
Na parte final da conversa, o artista detalhou a consolidação do que chama de “movimento beiradeiro” em Porto Velho. Ele pontuou que o termo “beiradeiro” já aparecia em produções musicais desde a década de 1980, citando como referência o compositor Walter Bártolo (mencionado como Walter Barthel), autor de canções e de hinos, e lembrado também como ex-deputado estadual. Segundo Samuel, relatos indicam que Barthel teria apresentado em São Paulo uma “música beiradeira” ao ser instado a tocar um ritmo de sua região. O músico mencionou ainda outros nomes que, por suas lembranças, contribuíram para essa construção, como Bado, Binho, Zezinho Maranhão, Augusto Silveira, Elisa Coutinho e Lion, associando-os à fase em que a temática beiradeira estava “muito centralizada na música”.
Samuel situou o surgimento da banda Quilomboclada, no início dos anos 2000, como momento de inflexão. “A banda Quilomboclada pega essas influências da música beiradeira e coloca numa linguagem juvenil”, disse. Para isso, a formação incorporou guitarra distorcida, baixo, bateria e percussão, trazendo letras que explicitam a identidade beiradeira e aproximam o tema da juventude. A partir daí, ele descreveu um processo de expansão do conceito para outras áreas. Segundo o entrevistado, o termo começou a aparecer em empreendimentos gastronômicos – como sorvetes, restaurantes e sanduíches com denominações beiradeiras – e em grupos artísticos de teatro e dança, como a Companhia Beiradeira de Teatro e a Companhia Beiradeira de Dança, voltadas a roteiros e coreografias que tratam do dia a dia amazônico e do povo do Madeira.
O artista também mencionou produções audiovisuais e literárias – incluindo poetas que se autodeclaram beiradeiros, como Eliseu Braga – e marcas de vestuário que utilizam expressões e referências da vida ribeirinha em camisetas e outros produtos. “Então hoje eu posso dizer de forma categórica que existe em Porto Velho o movimento chamado movimento beiradeiro”, afirmou, listando música, teatro, dança, literatura, audiovisual e estética como frentes de atuação. Samuel acrescentou que, segundo sua percepção, o termo “beiradeiro” é assumido de maneira específica em Porto Velho, em associação às margens do Rio Madeira. Ele mencionou que não identificou o uso da palavra, nessas condições, em capitais como Belém, Manaus ou em estados como Acre e Roraima, onde haveria outras denominações. Em paralelo, lembrou que o termo também é reconhecido no Nordeste para se referir a quem vive à margem do Rio São Francisco, o “Velho Chico”.
O músico relacionou essa conexão à origem nordestina de parte da população de Porto Velho, apontando a colonização por migrantes dessa região e citando sua própria ascendência cearense. Ele sugeriu que a relação entre beiradeiros do São Francisco e do Madeira pode se converter em tema de estudos para historiadores, já que, nas palavras dele, não é pesquisador da área. Como referência bibliográfica, Samuel indicou o livro “Dicionário Porto Velhez”, de autoria da professora Naí Gugel, que, segundo ele, retrata a junção de elementos do Norte e do Nordeste em Porto Velho. Robson afirmou conhecer a autora e mencionou já tê-la sugerido à Academia Rondoniense de Letras.
Ao final da entrevista, Samuel informou os endereços nas redes sociais onde o público pode acompanhar sua obra. Ele mencionou o perfil pessoal “@samuelpsoa”, o perfil da banda Quilomboclada (@quilomboclada) e o projeto autoral solo “@samuelberaband”, voltado à musicalidade assinada diretamente por ele. Sobre a agenda, o artista reiterou que, em novembro, o show “Paneiro do Norte” será apresentado em Porto Velho, no Centro Cultural do Sesc, como parte do encerramento do circuito nacional. O evento deve incluir a exibição do documentário produzido pelo Sesc Brasil e, posteriormente, apresentação musical. Segundo ele, detalhes de local, horário e demais informações serão divulgados nos perfis mencionados. Robson encerrou o programa destacando que já conhecia o trabalho de Samuel e registrou o convite para que o artista retorne ao podcast na ocasião do show em Porto Velho, desta vez levando um violão para apresentar parte do repertório ao público do Resenha Política.



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