Publicada em 16/12/2025 às 10h51
Um debate transmitido pela TV Rema, pela Jovem Pan News e por plataformas digitais trouxe à tona uma das controvérsias mais sensíveis e polarizadas de Rondônia: a desintrusão de ocupantes da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau. Em conversa conduzida pelo jornalista Robson Oliveira, via podcast Resenha Política, em parceria exclusiva com o Rondônia Dinâmica, o advogado Ramíres Andrade — apresentado como especialista em direito indígena e ex-integrante do Ministério dos Povos Indígenas — expôs uma leitura histórica, jurídica e política do conflito, marcada por acusações de incentivos estatais à ocupação, relatos de violência no processo de colonização e críticas ao uso eleitoral da crise.
Logo na abertura, Robson Oliveira afirmou que o programa teria como foco a defesa das comunidades indígenas e dos povos originários, ao mesmo tempo em que reconheceu o impacto social da retirada de famílias que alegam ocupação prolongada. O jornalista descreveu o cenário como uma “confusão” instaurada a partir de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que determinaram a retirada de não indígenas de áreas reconhecidas como território tradicional.
Ao contextualizar sua atuação, Ramíres Andrade afirmou advogar na pauta ambiental indígena desde 2018 e relatou que, em 2023, passou a integrar a equipe do Ministério dos Povos Indígenas, onde permaneceu até março deste ano. Segundo ele, o conflito atual não pode ser compreendido sem resgatar o modelo de colonização adotado pelo Estado brasileiro na Amazônia, especialmente em Rondônia.
O apresentador reconheceu a precedência histórica dos povos originários, mas insistiu que o problema não se encerra na dimensão jurídica. Em um trecho longo, Robson Oliveira expôs sua posição e a contradição que, segundo ele, foi criada pelo próprio Estado ao longo das décadas:
“Quando você coloca essa discussão de retirar famílias que estão há 40 anos lá, do ponto de vista histórico, em relação aos povos originários, o nome já está dizendo, são originários, são mais antigas ainda. Dentro da perspectiva histórica, não tenho dúvida que os territórios indígenas prevalecem sobre quem chegou depois. Concordo com isso. No entanto, você cria um problema social que a gente não pode fechar os olhos. São seres humanos. São famílias. Existe um problema político estabelecido. Eu reconheço que são territórios indígenas, reconheço mesmo. Eu li, eu dei uma olhada nesses autos. Mas nós temos um problema social criado historicamente, porque lá atrás os órgãos de governo erraram. Erraram INCRA, FUNAI, erraram ao trazer pessoas do sul do país, de várias partes do Brasil, mandaram entrar, mandaram desmatar, autorizaram ocupação, e depois reconheceram aquelas áreas como terras indígenas. Como é que resolve isso agora?”
Ramíres respondeu afirmando que a raiz do impasse está no projeto de ocupação da Amazônia adotado pelo governo federal a partir da segunda metade do século XX. Ele descreveu Rondônia como fronteira estratégica, marcada pelo lema “integrar para não entregar”, e sustentou que a ocupação agrícola foi promovida em áreas densamente povoadas por povos indígenas, incluindo grupos isolados.
O advogado detalhou a dimensão territorial da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, afirmando que ela possui cerca de 1,8 milhão de hectares, incide sobre mais de dez municípios e abriga povos de recente contato e povos que vivem em isolamento absoluto. Segundo ele, esse contexto costuma ser ignorado em discursos que reduzem o conflito à permanência recente de ocupantes não indígenas.
A entrevista ganhou tom mais duro quando Ramíres passou a relatar episódios históricos de violência ligados à colonização. Ao mencionar confrontos armados e grupos de extermínio, foi interrompido pelo apresentador, que questionou se aquilo configuraria acusação direta. O advogado sustentou tratar-se de relato histórico e, em um trecho contínuo, descreveu o que afirmou ter presenciado ou ouvido de participantes daquele período:
“Eu tive contato direto, olho no olho, com uma pessoa que integrou um grupo de extermínio. Essas pessoas passavam semanas dentro da mata, caçando indígena, no contexto de conflitos daquela época. Nesse processo, os povos que viviam no território da Uru-Eu-Wau-Wau, que eram milhares, foram drasticamente reduzidos. Hoje restam pouco mais de uma centena. Era uma disputa territorial violenta. O colono descia do ônibus e ia para o confronto. Indígenas também reagiam. Foi um período extremamente brutal, que precisa ser compreendido historicamente.”
Na sequência, Robson Oliveira trouxe à mesa uma crítica recorrente no debate regional: questionamentos sobre estudos antropológicos e delimitação territorial. Ele mencionou a versão segundo a qual deslocamentos pontuais de indígenas poderiam ser utilizados para ampliar áreas de demarcação. Ramíres respondeu que essa leitura não se aplica ao caso da Uru-Eu-Wau-Wau, afirmando que se trata de território demarcado e homologado, com histórico consolidado de ocupação tradicional.
O jornalista então apresentou outra controvérsia: a alegação de que um decreto inicial teria estabelecido limites menores e que, posteriormente, outro ato administrativo teria ampliado o território, alcançando áreas ocupadas por famílias atualmente retiradas. Ramíres classificou essa versão como equivocada e explicou que o primeiro ato citado se referia a área de estudos, não à demarcação definitiva.
Ao tratar das consequências jurídicas, o advogado foi direto ao afirmar que, uma vez reconhecida terra indígena, títulos e registros sobrepostos são considerados nulos, conforme a Constituição Federal. Em um trecho longo, ele detalhou esse entendimento:
“Quando o Estado reconhece uma terra indígena, qualquer título expedido sobre aquela área é nulo. Não importa se foi INCRA, cartório, escritura pública. Isso não é decisão minha ou de juiz A ou B. Está na Constituição, no artigo 231. O que se discute depois não é se a terra é indígena, isso já está superado. O que se discute é se houve boa-fé, se o Estado errou ao conceder, se o INCRA tinha ciência. E, nesse caso, o Estado errou, sim.”
A partir desse ponto, Ramíres passou a diferenciar ocupações antigas de processos mais recentes, afirmando que parte das entradas ocorreu por especulação imobiliária, compra e venda informal e atração por terras baratas sem documentação. Ele acusou agentes políticos de incentivar a permanência e, posteriormente, usar o sofrimento das famílias como instrumento eleitoral. Robson Oliveira resumiu a crítica como atuação de campanha, interpretação com a qual o advogado concordou.
No terço final da entrevista, o foco se deslocou para as possíveis soluções. Pressionado pelo tempo, Ramíres afirmou que a única saída passa por reconhecimento do erro estatal e políticas públicas efetivas, como indenização, reassentamento e desapropriação de áreas para reforma agrária. Ele citou a existência de áreas já desapropriadas pelo INCRA na região de Porto Velho e no eixo em direção a Abunã, embora sem detalhar localizações.
O advogado também rejeitou a ideia de “competição de sofrimento”, afirmando que não há celebração do conflito por parte das comunidades indígenas e que o drama humano atinge ambos os lados. Robson Oliveira reforçou essa visão ao repudiar discursos extremistas contra indígenas e insistir que o Estado não pode abandonar as famílias retiradas.
Ao encerrar, o apresentador classificou o tema como “extremamente complexo e extremamente polêmico” em Rondônia e afirmou esperar que atores políticos construam soluções que atendam indígenas e não indígenas, sem que um lado seja sacrificado em favor do outro.
DEZ FRASES DE RAMIRES ANDRADE NO RESENHA POLÍTICA:
01) “Isso aqui não aconteceu de uma hora para outra; o Estado brasileiro deflagrou um programa de colonização absolutamente desastroso e Rondônia foi o laboratório desse erro.”
A frase foi dita quando o advogado explicou que a desintrusão atual é consequência direta de decisões estatais tomadas décadas atrás, e não de um ato isolado do Judiciário.
02) “O projeto era ocupar a Amazônia a qualquer custo, empurrando os povos indígenas cada vez mais para longe da BR, até que sobrasse apenas um refúgio.”
A fala foi entoada ao contextualizar o lema ‘integrar para não entregar’ e a lógica territorial que orientou a abertura de frentes agrícolas no estado.
03) “O colono descia do ônibus, recebia um número de lote e ouvia: desmata tudo, planta qualquer coisa e, se conseguir, ganha outro pedaço de terra.”
A declaração surgiu enquanto descrevia o funcionamento prático do modelo de assentamento adotado pelo INCRA durante a colonização.
04) “Houve gente que passou semanas dentro da mata caçando indígena, isso não é metáfora, é relato histórico do que aconteceu aqui.”
A afirmação foi feita ao relembrar episódios de violência extrema ocorridos durante a expansão territorial em áreas hoje reconhecidas como indígenas.
05) “Os povos que viviam no território da Uru-Eu-Wau-Wau eram milhares e hoje restam pouco mais de uma centena, e isso não foi obra do acaso.”
A frase foi dita ao tratar da redução populacional indígena associada aos confrontos e ao avanço da ocupação não indígena.
06) “Não é todo mundo que está ali de boa-fé; muita gente entrou no oba-oba da especulação porque era terra barata e sem documento.”
A declaração foi feita quando diferenciou ocupações antigas de entradas recentes motivadas por compra informal e expectativa de regularização futura.
07) “Tem político que mandou entrar, depois mandou ficar, depois mandou resistir à notificação e agora volta lá para fazer campanha em cima da casa que virou cinza.”
A frase foi pronunciada ao criticar o uso eleitoral do sofrimento das famílias atingidas pela desintrusão.
08) “Quando o Estado reconhece a terra indígena, qualquer título expedido em cima dela é nulo, não importa se tem escritura, carimbo ou registro em cartório.”
A fala ocorreu durante a explicação jurídica sobre os efeitos do reconhecimento formal da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau.
09) “Essas famílias acreditaram no Estado, acreditaram nos políticos e continuam pagando a conta de um erro que não cometeram sozinhas.”
A afirmação foi feita ao reconhecer o drama social das pessoas retiradas e a responsabilidade institucional pelo impasse.
10) “Não se pode usar o sofrimento dessas famílias para relativizar o direito dos povos indígenas, que já foram expulsos, massacrados e empurrados por séculos.”
A frase encerrou sua linha de argumentação ao defender que a solução passe por reparação estatal sem negar direitos originários.



Comentários
Seja o primeiro a comentar!