O laudo de Rondon na construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré

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Passado a Limpo

 

Em 1923, o ministro da Viação e Obras Públicas consultou o consultor-geral da República sobre como encaminhar discussão relativa às contas finais da construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré. Ajustou-se um arbitramento, indicando-se o então general Cândido Rondon como árbitro. Pelo que se lê do parecer, o árbitro não cumprira o prazo original para entrega do laudo, fazendo-o em momento subsequente, e decidindo contra a União. Questionava o consulente se havia remédio, isto é, se a União poderia desafiar o laudo de Rondon em juízo.

 

O parecer é comprovação histórica da viabilidade da arbitragem em matéria de direito e de interesse públicos, quebrando um mantra de indisponibilidade que parece não se conformar com a nova lei de arbitragem. O Consultor-Geral opinou pela possibilidade do encaminhamento da discussão para o Supremo Tribunal Federal, com base em regra do Código Civil, com fundamento no atraso da entrega do laudo que pacificaria a questão. Segue o parecer:

 

“Gabinete do Consultor-Geral da República — Rio de Janeiro, 25 de setembro de 1923.

Exmº. Sr. Ministro de Estado da Viação e Obras Públicas — Com o Oficio nº 176, de 12 do corrente, solicitou V. Ex.ª meu parecer sobre as contas finais da construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré cuja liquidação o Governo e a Companhia acordaram confiar ao arbitramento do General Cândido Rondon, devendo eu ter em vista especialmente verificar se, em defesa dos interesses da União, resta ainda ao Governo algum recurso depois do laudo do referido árbitro.

Do estudo dos papéis vê-se que, não tendo podido chegar a acordo direto o Governo e a Companhia, a propósito da liquidação, final das mencionadas contas, resolveram as partes recorrer ao arbitramento, tendo sido lavrado o respectivo compromisso, assinado pelo Inspetor Federal das Estradas e pelo representante da Companhia em 18 de outubro de 1921. Esse compromisso, denominado no caso — termo de ajuste — foi lavrado de acordo com  cláusulas que, pela Inspetoria, foram submetidas ao Sr. Ministro da Viação e Obras Públicas, e por ele aprovadas pelo Aviso n.º 768, de 28 de setembro daquele mesmo ano, referido no cabeçalho do dito termo. Consta igualmente das informações que o General Rondon assinou a 2 de janeiro de 1922 o respectivo compromisso.

Findo o prazo de 90 dias estabelecido na cláusula IV para apresentação do laudo, sem que ele houvesse sido apresentado, foi lavrado um termo adicional concedendo ao árbitro novo prazo de 120 dias a contar de 3 de junho, termo adicional que foi aprovado pelo Aviso n.º 71, de 24 de junho, do antecessor de V. Ex.ª. Com data de 3 de outubro o árbitro ofereceu o laudo que é inteiramente favorável à Companhia construtora da estrada de ferro.

Devo observar que dos papéis que me foram remetidos não constam certos documentos essenciais para perfeita apreciação do modo por que foi instituído o presente juízo arbitral, como o aviso aprovando as cláusulas apresentadas pela Inspetoria das Estradas; o compromisso assinado pelo arbitro; o termo adicional concedendo a prorrogação do prazo para apresentação do laudo.

Há no histórico dos fatos e informações da Secretaria, entretanto, referências positivas a esses atos. Devo observar ainda que o compromisso arbitral, aqui chamado termo de ajuste, não estatui claramente acerca da questão de saber se da decisão arbitral podia ou não qualquer das partes interpor recurso para o tribunal, superior.

A instituição do arbitramento é sempre um processo judicial que pode, como faculta a lei, ser pactuado durante a lide, ou antes de ser esta instaurada. Ele visa, simplificando as fórmulas processuais, entregar o julgamento da divergência a juízes de livre escolha das partes, e a decisão é, por força da lei, salvo cláusula em contrário, irrecorrível. De fato, reza o art. 1.041 do Código Civil, que reproduz o texto do art. 48 do Decreto n.° 3.900, de 26 de junho de 1867: Os árbitros são juízes de fato e de direito, não sendo seu julgamento sujeito a alçada ou recurso, exceto se o contrário convencionarem as partes.

Convém, entretanto, observar que, mesmo quando o arbitramento é instituído como irrecorrível, pode qualquer das partes recorrer dele para o tribunal superior, quer no caso de nulidade ou extinção do compromisso, quer no de ter o árbitro excedido seus poderes (Código Civil, art. 1.046).

Na hipótese não se declarou expressamente que a decisão seria irrecorrível; mas que isso se quis estipular se depreende do art. 1ª do compromisso, pelo qual o árbitro decidirá de modo irrevogável as duas questões propostas; como ainda da cláusula VIII onde se convenciona que as contas e responsabilidades recíprocas, até a data do compromisso, serão definitivamente liquidadas de acordo com as presentes cláusulas.

De um modo geral, pois, em face do princípio legal do art. 1.041 do Código Civil e dos termos do compromisso, não cabe recurso da decisão proferida pelo árbitro.

 Parece-me, entretanto, que no caso o recurso facultado pelo transcrito art. 1.046 do Código Civil, cabe com inteira aplicação, pois que, a meu ver, o laudo foi apresentado fora do prazo convencional e assim quando o compromisso arbitral estava extinto. Realmente, o compromisso se extingue se, findo o prazo, os árbitros não se tiverem pronunciado (Clóvis, Comentários ao artigo 1.040, vol. 4.°, pág. 198), e é evidente que o prazo de 120 dias a contar de 3 de junho se extinguiu a 1.° de outubro.

É sabido que na fixação de prazos, quando se estipula o prazo por mês, conta-se um período sucessivo de 30 dias. É o prÍncipio do § 3.° do art. 125 do Código Civil, e que apesar de aceitar o principio já consagrado, na Ord., L. 3, Titulo 13, mereceu críticas, a meu ver fundadas, por alterar o calendário. (Vide Eduardo Espínola — Anotações ao Código Civil, vol. l.º n.° 188, pág. 403). Os prazos, porém, certos, designados por um número determinado de dias, ou sejam prazos fixados por dia, se contam de hora a hora (Carlos de Carvalho, Nova Consolidação, art. 52; Spencer Vampré, Manual do Direito Civil. vol. 1.°, § 63- in fine) e no dizer do Código Comercial, são fatais e improrrogáveis (art. 441).

É evidente que excluindo o dia do começo e incluindo o dia do vencimento, como dispõe o art. 125 do Código Civil, um prazo de 120 dias a começar de 3 de junho, compreende 27 dias do mês de junho, 31 do mês de julho, 31 do mês de agosto, 30 do mês de setembro o que perfaz 119 dias e termina no dia 1.° de outubro (27 + 31 + 31 + 30 + 1 = 120). Ora, o laudo tem a data de 3 de outubro.

E assim é necessário convir em que foi apresentado fora do prazo do compromisso, cabendo ao Governo interpor, neste caso, o recurso de apelação para o Supremo Tribunal Federal, facultado pelo art. 1.046 do Código Civil.

É o que me cabe dizer sobre a matéria da consulta, especialmente no ponto-de-vista de verificar que providências pode ainda o Governo lançar mão depois da apresentação do laudo arbitral, como V. Ex.ª solicita.

Devolvo os papéis e tenho a honra de renovar a V. Ex.ª meus protestos de elevada estima e distinta consideração.

Rodrigo Octavio”

 

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP. Doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

Autor / Fonte: conjur/ Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

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