Herança de Yoñlu – A inveja de um xará amicíssimo que não conheci nem jamais conhecerei

Porto Velho, RO – Um colega distante, cuja presença há muito não desfruto, me apresentou rapidamente, em forma de rascunho digital, a biografia de um músico chamado Yoñlu.

Inicialmente, sem maiores digressões, imaginei tratar-se de artista holandês, islandês como Björk ou coisa que o valha. Até que, obviamente, fora informado de que a nomenclatura não passava de um pseudônimo.

Era a credencial paralela de um xará que, diferentemente de mim, começou certo na vida vez que Vinícius, com o devido acento agudo no segundo ‘i’, já destoava ao meu equivocado Vinicius, empobrecido pelo cartório, avalizado posteriormente pelos meus pais e absorvido por mim. Começou certo, mas terminou errado – muito errado.

O nome completo do artista era Vinícius Gageiro Marques. Era. Porque quando me fora apresentado o seu material, um riquíssimo acervo de músicas soturnas com letras tristonhas – porém não enfadonhas – adornadas por arranjos sutis, delicados, como se esculpidos naturalmente e com maestria inequívoca a encaixar às belas composições, o autor já estava morto há pelo menos dois anos.

Gageiro se suicidou aos 16 anos no dia 26 de julho de 2006 em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no apartamento onde morava com os pais. Ele contou com auxílio de pessoas avulsas no submundo da internet e, muito provavelmente, os compreendia como amigos, sujeitos dispostos a apresentar conselhos que pudessem fulminar de uma vez só as dores que sentia no peito.

Dores estas irremediáveis, sem cura. Tão fortes que o fizeram dividi-las em faixas musicais, o único método eficaz para dispersar a atenção e distrair-se, ainda que por pouco tempo, das agruras do mundo.

Se você leu até aqui querendo saber detalhes sobre a morte, esqueça. Mas não serei maldoso. A reportagem da Época detalha o ocorrido. Clique aqui e leia a íntegra do material publicado em fevereiro de 2008.

Faço a indicação, pois, enquanto descobria os porquês de Yoñlu minha curiosidade mórbida, partilhada com inúmeros semelhantes, me impulsionava a vasculhar mais e mais a fim de saciar a implacável abelhudice lúgubre acerca do trágico desfecho de meu xará, ignorando completamente a sua herança cultural.

Com o passar do tempo, o suicídio em si perdeu o protagonismo em nossa relação de amizade, embora não nos conhecêssemos e ainda que o fim de sua unidade de carbono decrete o óbvio: jamais apertaremos sequer as mãos!

Conforme o perecimento da existência física do garoto de Porto Alegre ia sendo jogado para planos cada vez mais secundários de sua riquíssima história, vinha à tona o abundante material deixado como legado aos pais que, a despeito do desalento e prostração da perda, provavelmente a pior das melancolias que um ser humano possa sentir, cumpriram a missão de difundi-lo.

Álbum com 23 músicas deixadas pelo artista

Não só resistiram ao baque, como fizeram questão de proliferar um Vinícius não corpóreo que, ao mesmo tempo em que não pertence a ninguém, é patrimônio do mundo – figurando como espécies de fagulhas panteístas de aptidão, técnica e talento musical a ouvidos receptíveis.

Vinícius, o melhor amigo que nunca vou conhecer, recebeu homenagem em forma de cinebiografia dirigida e escrita por Hique Montanari agora em 2017. Não é o tipo de filme que você assistirá nas salas de cinema, é claro. No entanto, a busca pelo longa é totalmente válida se houver interesse na fuga dos blockbusters eventuais.

Como apontado pelo crítico de cinema Pablo Villaça, uma produção de risco, vez que, honestamente, o primeiro pensamento que vem à tona em forma de questionamento é: “O que se produz de significativo com 16 anos de vida?”. No caso de Marques, raríssima exceção, muita coisa! 

Pablo Villaça, do Cinema em Cena, comenta o filme:

Aliás, uma vida cujo ponto-auge será compreendido a rigor erroneamente na visão dos desavisados como o ato suicida, o fechar derradeiro das cortinas. E está muito longe de ser. Ainda assim, seria possível retratar o fato sem a glamourização costumeira, como ocorrera, por exemplo, em “13 Reasons Why”? Sim, e só assistindo para saber de que jeito.

As manchetes sensacionalistas e até mesmo titulações das críticas e notícias nos sites especializados em filmes buscam o suicídio como mote principal da trajetória de Yoñlu – e é sintomático que as façam neste contexto cibernético de atrativos mentirosos palatáveis.

Quando descobri Vinícius, senti uma inveja gigantesca de seu potencial – coisa que provavelmente ele nunca enxergara em si. Na verdade, ainda sinto.

Com menos de 18 anos e além de ser autodidata, lia e compreendia Franz Kafka, falava fluentemente inglês, havia aprendido francês e com aparato doméstico brincava profissionalmente de editar as próprias músicas em vários canais como se fosse um híbrido humano de estúdio e banda.  

Sem saber, deixou-me ainda de presente magistral releitura de “Estrela, Estrela”, do excelentíssimo Vitor Ramil. Foi a última canção dedicada a seus familiares, contrariando a fatal sentença que exauriu sua genialidade:

“Porque é bom morrer com música alegre” – escrevera aos pais antes de rumar ao desfiladeiro.

E é justamente a composição de Ramil que mantém a obra do prodígio entristecido e desconhecido viva:

“Eu canto, eu canto,
Por poder te ver.
No céu, no céu,
Como um balão.

Eu canto e sei,
Que também me vês,
Aqui, aqui,
Com essa canção!” – Trecho de “Estrela, Estrela”


A versão de Yoñlu para a música

Autor / Fonte: Vinicius Canova

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