Boate Kiss – A procuradora procurou... E achou!



Porto Velho, RO –
Quando decidi reassumir o compromisso de escrever uma coluna defini, comigo mesmo, que a tarefa seria cumprida todas as sextas-feiras, como faço questão de esclarecer ao final de meus textos.Não há pressão nem imposição editorial. Mas uma notícia especialmente trágica trazida à baila pela Folha de S. Paulo compeliu-me a redigir e publicar esta edição extraordinária de ‘Visão Periférica’.

 


A matéria envolve o desastre ocorrido na Boate Kiss no dia 27 de janeiro de 2013, há exatos quatro anos e um mês. O incêndio e suas consequências tiraram a vida de 242 pessoas.

Seria impossível, mesmo aqui de Rondônia, esquecer tamanha desgraça por dois motivos: o primeiro deles é que, embora pertença territorialmente ao perímetro desbravado por Rondon, meu sangue é gaudério por hereditariedade, infligindo luto e solidariedade imediatamente. O segundo diz respeito ao fato de que, no mesmo dia onde centenas de conterrâneos por afinidade deixaram este plano de existência, eu nasci. Comemorava, sem saber, meus 24 anos enquanto vítimas, amigos e familiares agonizavam fisicamente e/ou em franco desespero por conta da calamidade lá em Santa Maria.


Trecho da contestação apresentada pela procuradora / Reprodução: RBS - Rede Globo 

Não consigo definir ainda a sensação causada pelas palavras da procuradora Mirela Marquezan que, ao patrocinar os interesses do município, resolveu tentar dividir os encargos do ocorrido imputando responsabilidade aos mortos. De acordo com Mirela, a embriaguez dos padecedores teria sido crucial para o desfecho devastador, já que os demais frequentadores do ambiente teriam conseguido escapar mesmo estando em pontos mais distantes da saída.

"Certamente diferentes fatores contribuíram para esta diferença de condutas e desfechos, sendo, um deles, o estado de sobriedade ou de embriaguez de cada um dos frequentadores do estabelecimento, fato que deve ser bem analisado em cada caso concreto", apontou.

Em outro trecho, disse:

"Apesar da comoção generalizada e luto coletivo ocorridos com a tragédia da boate Kiss, e mesmo podendo parecer insensível mencionar a possibilidade de ocorrência de culpa das próprias vítimas; não há como ignorar o fato de que diversas pessoas que estavam em frente ao palco, onde começou o incêndio, conseguiram sair do local; ao passo que outras tantas, que estavam muito mais próximas à porta de saída, não abandonaram o recinto", decretou.

Acredito que para todo ofício exista certo limite em relação aos esforços dispendidos no intuito de mantê-lo, aprimorá-lo e obter reconhecimento. A procuradora é servidora efetiva, não recaem sobre si os receios e tormentos vivenciados pelos comissionados, contratados transitoriamente de acordo com as vontades dos eleitos.


Mortes, omissão, negligência e impunidade: a tragédia da boate Kiss / Imagem: Reprodução

Na minha cabeça, não há espaço para conceber que sequer um ocupante de cargo de confiança colocaria seus intentos pessoais e do patronato acima da angústia e do sofrimento amargurados pelos parentes remanescentes do trágico episódio. Pais e mães, ‘órfãos’ de seus filhos, insurgiram-se – com razão – contra as declarações jurídicas prestadas pela procuradora. Revoltados, não irão aceitar tamanha bobagem e insensibilidade oficial.

"Quero saber em qual técnica ela se baseou para escrever isso. Primeiro, ela não é médica. Segundo, não é bombeiro para saber se as pessoas podiam ou não sair da boate. Ela não tem conhecimento técnico para usar esse argumento", declarou o presidente da AVTSM (Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria), Sérgio Silva.

Logo em seguida, Silva apontou:

“Meu filho estava na porta da boate, estava com o meu carro e não tinha uma gota de álcool no sangue, conforme a perícia no corpo. Qual argumento da procuradora para isso? Eu, como pai, gostaria que ele estivesse bêbado e drogado, para morrer numa boa, sem noção da realidade, e não sofrendo como aconteceu”, concluiu.

É aquela velha situação: quem fala o que quer, ouve o que não quer. No caso, a procuradora procurou... E achou. No mínimo, enfrentará Processo Administrativo Disciplinar, sem contar as ações que responderá na Justiça.

Marquezan demonstrou que não tem limites quando o assunto é ‘proteger’ as pretensões municipais. Agora, prestará contas da sua impiedade, frieza, apatia e indiferença.

A coluna Visão Periférica é publicada tradicionalmente às sextas

Autor / Fonte: Vinicius Canova

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