Desvio de recursos impõe cárcere ao cidadão comum enquanto criminosos prosperam em liberdade

Texto e reportagem.: Vinicius Canova
Entrevistas e fotografias.: Gregory Rodriguez
Imagens.: Ytalo Andrade
Arte de abertura.: Roberto Lamarão

Porto Velho, RO – Já está sacramentado que, junto de outros ilícitos como a própria corrupção, a improbidade administrativa é ingrediente crucial para a execução perfeita da receita do caos público.

Leia a primeira parte e o último capítulo da série

12/10/2016 – A missão do Ministério Público de Rondônia no combate aos gestores desleais

26/10/2016 – Quando nunca chega o dia da caça

Neste segundo capítulo da reportagem especial sobre o tema, o jornal eletrônico Rondônia Dinâmica destaca a visão de um membro do Poder Judiciário acerca da questão; traz depoimentos de cidadãos que cansaram de esperar as benesses prometidas pelo poder público em relação à Segurança Pública e expõe as chagas estruturais das instituições que zelam pelo setor.


O juiz Edenir Sebastião Albuquerque da Rosa / Foto.: Ytalo Andrade (Rondônia Dinâmica)


Com 21 anos de magistratura, o juiz Edenir Sebastião Albuquerque da Rosa, titular da 2ª Vara da Fazenda Pública de Porto Velho, entende muito bem do assunto. Formado pela Universidade Federal do Mato Grosso, o togado excursionou profissionalmente pelas comarcas do interior passando por Cerejeiras, Colorado d’Oeste, Vilhena, Costa Marques, Guajará-Mirim e, finalmente, estacionando em Porto Velho. Rosa opera na Fazenda Pública desde 2004 quando passou a atuar na 1ª Vara em substituição. Tornou-se titular três anos depois, em 2007, quando assumiu a 2ª Vara na Capital.

Albuquerque disse que a maior dificuldade em julgar uma ação civil pública de improbidade administrativa é justamente a demora decorrida do rito diferenciado versado pela Lei 8.429/92, a Lei de Improbidade Administrativa (LIA).

Existem ações em que o autor relaciona dez ou vinte pessoas. O prazo para contestação, ou seja, para resposta à acusação, começa a correr depois que o último réu é citado. Quando existem advogados diferentes, que é o que geralmente ocorre nesses casos, o prazo é contado em dobro.

“É um processo demorado”, indicou.

Assim como exposto pelos membros do Ministério Público (MP/RO) na parte anterior, o magistrado aponta a morosidade imputada pelo dispositivo legal que, diferentemente de outras leis, propicia ao agente público acusado apresentar defesa numa fase preliminar do processo. Apesar da lentidão, Sebastião explicou que o trâmite alongado tem fundamento.

Esse pontapé processual inicial serve para conferir maior oportunidade ao agente de se defender, pois, segundo o juiz, só pelo fato de responder ao processo já o expõe a uma situação de fragilidade perante a opinião pública.

Quanto à apuração do fato material em si não há muita dificuldade em relação aos demais processos. Porque a maioria das ações vem documentada em termos comprobatórios. São inspeções promovidas pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE/RO), apurações levantadas pelo MP/RO e achados que os municípios e o Estado trazem documentalmente aos autos a fim de corroborar com as denúncias.

“Prova testemunhal não é tão relevante nas ações civis públicas. Mas existem as instruções. Ocorrem as instruções em razão da necessidade de o juiz se aproximar da realidade do agente público. É essa a importância que se tem da prova testemunhal”, destacou.

Há casos de irregularidades e/ou falhas que decorrem de vícios meramente formais. Para as pessoas que incorrem nessas modalidades de ilegalidade há outras instâncias judiciais ou da própria legislação para puni-las. Existe o TCE/RO, por exemplo, que pode aplicar multa ou censurar agentes públicos que não cumprem a forma da lei sem que, contudo, sejam consideradas condutas ímprobas.

Sobre os impactos ao erário, levando em conta o dinheiro que escoa a fundo perdido por conta da malversação, ressaltou que existem duas situações previstas na LIA relacionadas ao dano. A primeira, diz respeito ao agente público que se beneficia desses recursos; a outra, dá causas à perda desses montantes em benefício de terceiros. Neste último caso, a figura do ‘laranja’ volta a aparecer como peça-chave de esquemas perpetrados na Administração Pública. Numa licitação, por exemplo, o agente pode não se apropriar de bens, mas de uma vantagem que não seja material advinda de alguém que possa trazer algum tipo de benefício a ele.

“Quando esse recurso sai dos cofres públicos e é incorporado ao patrimônio de determinada empresa é comum que as pessoas transfiram esses bens a terceiros: parentes, conhecidos, ‘laranjas’, outras empresas e por aí vai. Forma-se uma rede de corrupção numa via indireta e, a partir daí, é realmente muito difícil rastrear o patrimônio. Mas a cada dia que passa medidas surgem para que esses valores sejam recuperados”, asseverou.

Conforme aventado pelos promotores de Justiça Alzir Marques e Rogério Nantes na matéria inaugural da série, as finanças que se desprendem de sua destinação original acabam impactando diretamente setores primordiais da Administração Pública. Mas, apesar de concordar com os representantes do MP/RO, o magistrado fez um adendo impondo parte significativa da responsabilidade à população.

“É realmente relevante falar sobre isso. A situação passa por uma necessidade de conscientização. De assunção de cada cidadão sobre sua própria cidadania. Mas de uma cidadania que faça um equilíbrio entre direitos e deveres, responsabilidades e atributos. É muito comum se olhar pro Estado como se fosse somente um ponto onde todos vão colher alguma coisa. O Estado, antes disso, é o local onde todos irão contribuir com algo”, anotou.

Edenir Sebastião compreende que muitas pessoas só pensam em seus direitos e querem, a todo custo, que o Estado os entregue.

“’Se outra pessoa não tiver [seus direitos atendidos], ela que vá atrás’. Esse senso de ‘despertencimento’, de não integração com a coisa pública, faz com que haja certo descaso com aquilo que é do Estado e você só vai se importar quando um órgão fiscalizador apontar o erro. Nós não exercemos a fiscalização cidadã”, pontuou.

Juiz diz que MP/RO está na vanguarda do combate à corrupção

O componente da Justiça de Rondônia enfatizou a importância do ativismo do MP/RO. Na sua concepção, é preciso que se reconheça a vanguarda do órgão no combate à corrupção e à improbidade administrativa.

“Isso porque desde o início da minha carreira tive contato com promotores que sempre foram muito ciosos e comprometidos com ações de cidadania e controle do patrimônio público”, justificou.

De acordo com Edenir, esse ativismo fez com que Rondônia, antes da maioria dos Estados, expusesse políticos desonestos em ações que envolveram câmaras municipais, a Assembleia Legislativa, governo e seus órgãos e ainda prefeituras.

“Nossa Assembleia Legislativa já sofreu graves intervenções por conta de improbidade. Houve destituição de presidências, mesas diretoras, ocorreram prisões e diversos políticos foram processados. A repercussão nacional foi limitada, é verdade. Mas tudo isso ocorreu antes dos grandes escândalos que tempos depois tomaram conta do Brasil”, disse.

Rondônia motivo de orgulho, não de vergonha

Foi relembrado pelo magistrado que, por conta de toda essa repercussão negativa, os próprios habitantes do Estado passaram a denominá-lo com termos pejorativos, inclusive ‘Roubônia’, nomenclatura utilizada para fazer gracejo dando a entender que as Terras de Rondon também abrigam bandidos e são permissivas com toda ordem de salafrários.

“Onde a lei é aplicada, onde as coisas são expostas, é que acontece a Justiça. Então antes, há dez ou quinze anos, o MP/RO já propunha ações, políticos já sofriam processos e o Poder Judiciário já atuava. Muitas pessoas viam isso como uma vergonha para o Estado de Rondônia. Nunca foi vergonha e nunca deveria ter sido visto como vergonha! Deveria ter sido sempre exaltado como um Estado onde os órgãos e as instituições de fiscalização funcionam”, exclamou.

É preciso extrair a lição para o futuro: noção de cidadania, de responsabilidade e temor. Este último, receio que deve ser nutrido por qualquer pessoa que pretenda cometer um ilícito. O histórico de represálias pesadas voltadas a agentes públicos que resolveram usufruir daquilo que não lhes pertencia criou esse ensinamento para tempos vindouros.

“Temos Estados em que isso [ações de fiscalização e julgamentos adequados] não ocorre e aí os cidadãos de conduta errônea ficam encastelados em oligarquias. Difícil alguém constituir oligarquia aqui no Estado de Rondônia justamente por isso: porque a atuação dos órgãos de fiscalização faz com que haja uma preocupação maior, um receio de que isso possa resultar numa situação problemática adiante para quem resolver desvirtuar a coisa pública”, arrematou.

Segurança Pública: o descontentamento de quem trabalha na área 

Rodrigo Marinho é agente da Polícia Civil e atualmente preside o Sindicato dos Servidores da Polícia Civil do Estado de Rondônia (SINSEPOL).  O servidor público informou que a situação das delegacias está num estado lastimável, precário.

A entidade tem percorrido todas as instalações tanto na Capital quanto no interior.

“A falha é a mesma em todos os casos: as delegacias sem a mínima condição de trabalho”, denunciou.

Marinho relatou que tudo está sendo devidamente registrado e fotografado para que o sindicato possa alertar as autoridades do MP/RO, da Vigilância Sanitária e até mesmo do Ministério da Defesa, este por conta da guarda de armamentos.

O policial disse ainda que o atual governo tem sido péssimo para investimentos na área de Segurança Pública.

“Hoje, cerca de 60% dos coletes balísticos dos policiais que trabalham no setor de investigação estão fora do prazo de validade. Os policiais também não recebem o devido armamento e suas munições com prazo de validade mínimo para utilização em tempo hábil, no caso, seis meses”, apontou o sindicalista.

Para o representante da categoria, é uma gestão que não tem lidado com o devido respeito com a Polícia Civil e outros órgãos. E quem perde efetivamente com a displicência do Poder Executivo é a população porque acaba ficando refém dos criminosos, completamente desprotegida.

Um terço das viaturas pertence à frota do Estado. O restante fora adquirido através de contratos de locação. No segundo caso, não há maiores problemas, segundo Rodrigo. Entretanto, os automóveis próprios detém a mesma atribulação das delegacias: se tornaram sucatas ambulantes e, em alguns casos, com documentos vencidos.

O servidor, ao ser questionado sobre seu entendimento acerca da improbidade administrativa, relembrou que a falta de habilidade dos gestores em lidar com a coisa pública culmina em tragédias sociais, a exemplo do fato do Município do Vale do Anari figurar entre as cidades mais perigosas do Brasil.

“Isso ocorre por conta da falta de investimento na área. Os policiais trabalham de forma sobrecarregada, não são tratados com o mínimo de dignidade. Noventa e oito por cento dos recursos destinados à Secretaria de Estado da Segurança, Defesa e Cidadania (SESDEC) são para cobrir a folha de pagamento dos servidores.  Apenas dois por cento podem ser revertidos em investimentos efetivos. O que se pode fazer com esse valor?”, questionou.

Categoria denunciou governador por improbidade administrativa

Marinho também contou que o sindicato denunciou o atual governador Confúcio Moura (PMDB) por suposto ato de improbidade administrativa ao MP/RO. Segundo ele, o peemedebista teria editado decreto no intuito de retirar das delegacias objetos de apreensão que acompanham o inquérito.

O policial vislumbrou que a atitude de Moura não tem como prosperar uma vez que, no seu entender, o decreto afronta o Código de Processo Penal (CPP).

“O que nos deixou mais tristes é que a ação do governador não foi tomada para valorizar os servidores. A intenção não era tornar o ambiente menos perigoso. Tudo que ele queria era reduzir gastos do Executivo imaginando que, caso os objetos saíssem das delegacias, não teria mais dispêndios com o custeio de adicional de periculosidade, direito conquistado pelos servidores de forma justa”, norteou.

A reportagem procurou o secretário de Segurança Antônio Carlos dos Reis que, concidentemente, é delegado de Polícia. Antônio Carlos vive o paradoxo de ser servidor público efetivo e, ao mesmo tempo, pertencer ao primeiro escalão comissionado do governo de Confúcio. E é justamente a gestão que integra que vem sendo alvo das fortes críticas lançadas pelos policiais civis. Em meio ao 'fogo cruzado', dos Reis respondeu às duras alegações.  

Ouça o áudio a seguir

 

Moradores experimentam o cárcere enquanto a bandidagem prospera

Eles não foram condenados. Ao menos não pela Justiça. Mas estão cumprindo pena de reclusão imposta por um tribunal de exceção: o da criminalidade. Cansados de serem extorquidos, roubados, violentados e amedrontados por aqueles que deveriam ver o ‘sol nascer quadrado’, contribuintes manifestaram seus reais sentimentos sobre a Segurança Pública. Mais uma vez, os entrevistados demonstraram desconhecimento teórico sobre a improbidade administrativa, entretanto, com o ‘couro calejado’ de tanto sentir as ‘chibatadas’ de suas consequências devastadoras, desenharam um quadro idêntico à representatividade conceitual da terminologia, coisa que pouquíssimos teóricos seriam capazes de fazer com tamanho desempenho pedagógico.

Poliana Carvalho tem 22 anos, é funcionária pública e mora no Bairro Cuniã, Zona Leste de Porto Velho. Com medo, pediu que seu rosto não fosse mostrado, mas permitiu que a fotografia fosse registrada a fim de demonstrar como é sua vida em franco temor auxiliando sua mãe atrás das grades no próprio comércio onde atendem.

“Não sei [o que é improbidade]. O que sei é que a área de Segurança Pública é uma porcaria, sinceramente! Acho que o dinheiro que era pra ser investido no setor está indo para outro lugar”, salientou.

Poliana relatou que pessoalmente não foi vítima de facínoras à solta, mas seus familiares já foram assaltados. Sua irmã foi abordada em casa por delinquentes que, além dela, amarraram seu esposo e também o filho.

“Levaram carro, tudo. Tudo que conseguiram carregaram”, relatou.

A moça disse ainda que não se sente segura mesmo com as grades que teoricamente deveriam protegê-la. Isso porque, de acordo com ela, não há segurança alguma.

“Na verdade quem fica aqui é minha mãe. Mas durante meio período eu chego e fico com ela. Algumas vezes a ameaçaram. Já mostram a arma para ela, mas acho que por minha mãe ser deficiente acabaram desistindo. Até somos bem atendidos quando precisamos da polícia, mas a demora nos massacra. Esse é o problema. Em janeiro assaltaram o vizinho da frente. Acho que liguei umas cinco vezes lá pro 190. Levaram horas para chegar”, desabafou.

Receoso, Rafael Marcel Dias, de 23 anos, também decidiu não mostrar a face assim que soube o tópico sobre o qual deveria responder. Ele é ajudante de serviços gerais e reside no Bairro Nova Esperança, também na Zona Leste da Capital.

“Rapaz, o que vejo é que temos grande carência na Segurança Pública pelos fatos que acontecem no dia a dia. Todo dia a gente vê assalto e assassinato. Eu não tenho muita confiança na Segurança Pública hoje em dia. Comigo nunca aconteceu nada, mas com amigos e conhecidos já”, disse.

Dias não tem ideia do que seja improbidade administrativa. O que sabe resume-se a conversas com pessoas próximas. Conserva a concepção de que os eleitores têm culpa por tudo que ocorre em relação aos desmandos perpetuados por gestores e demais agentes públicos. Isso porque, segundo ele, o voto acaba sendo depositado por conta de um determinado perfil observado e não necessariamente por propostas apresentadas.

“O recado que eu passaria ao poder público é para que os governantes cuidem da população como se estivessem cuidando da sua própria família. A casa deles [gestores] é bem segura. Então se cuidassem da cidade como cuidam da casa e da família deles nossa vida seria bem melhor “, finalizou.

Os índices em relação à população carcerária no Brasil já extrapolam os limites do razoável há anos. E a situação está desse jeito sem levar em conta outros encarcerados que não foram sentenciados por um juiz de Direito. Rosineide Arzer Magalhães, de 41 anos, é proprietária de uma mercearia na Av. Pinheiro Machado, Bairro Flodoaldo Pontes Pinto, Zona Norte. Para sentir a segurança que o poder público não lhe confere estabeleceu uma regra que vai contra todos os preceitos do empreendedorismo: seus clientes não podem adentrar às dependências de seu estabelecimento.

“Eu acho ruim [a Segurança Pública]. Não acho boa. Tem muito assalto, né? As pessoas ficam trancadas. Não podemos nem passear na rua atrás do shopping porque há muito assalto. Acho perigoso. Tem gente que tem de andar de dia porque de noite está cada vez mais difícil. Tem de guardar o celular e outros pertences bem guardados”, completou.

A comerciante trabalha numa fortaleza particular porque já fora assaltada e não quer mais correr o risco. Ela informou que antes não havia grades e nem outras proteções.

“Aí, por causa de uma balinha, eu quase morro. Um chiclete, aliás. O bandido disfarçou, disse que queria comprar um chiclete e anunciou o assalto. Mas mesmo com todo esse aparato não me sinto segura. Para o bandido é fácil entrar em qualquer lugar. Ele se faz de cliente e acaba nos roubando. Não sabemos quem é quem. Atendo pela grade e ficou melhor assim. Não deixo a pessoa entrar. Os clientes não gostam, mas o que eu passei justifica minha atitude”, concluiu.

O final

Na próxima quarta-feira (26) será veiculada a última parte da série especial com declarações de agentes públicos sobre a questão. 

Autor / Fonte: Vinicius Canova / Rondoniadinamica

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