Absolvições por clemência, sumária e de réu confesso reacendem debate sobre o Tribunal do Júri em Rondônia



Profissionais do Estado abordam as facetas do Júri

Texto, edição, entrevistas e reportagem: Vinicius Canova
Fotografias: Gregory Rodriguez 

Porto Velho, RO – No dia 20 de julho de 2017 o advogado Giuliano Toledo Viecili, ex-vereador de Candeias do Jamari, comemorou em sua página particular no Facebook numa postagem aberta ao público:

“Depois de tantas batalhas, hoje nossa atuação no Tribunal do Júri conquistou a absolvição de réu confesso! Parabéns, meu amigo Wladislau [Kucharski]”.


Viecili: “A gente costuma falar no Tribunal do Júri que ninguém pode dizer 'nunca vou matar'”

A maior parte das reações, claro, manifestou apoio ao contato. Ao destoar, uma delas, no entanto, chamou a atenção em meio a tanta celebração e cumprimentos. 

“Sim, e daí? Foi legítima defesa? Só assim uma absolvição para um réu confesso. Não estou entendendo” – ecoou comentário solitário, que ficou sem resposta. Aliás, sem resposta até a publicação desta matéria.

A mais de 700 quilômetros de Porto Velho e somente cinco dias depois do primeiro fato, a Defensoria Pública de Rondônia (DPE/RO) exaltou absolvição por clemência promovida pelo Júri em favor de um homem acusado de matar duas pessoas após bebedeira. 

Avançando mais um pouco ao sul no mapa, em abril deste ano a pacata cidade de Cerejeiras sentiu o baque de uma das tragédias mais bárbaras e, consequentemente, revoltosas dos últimos tempos: o Caso Jéssica. 

Tanto é que ressoou Brasil afora, alcançando os noticiários nacionais. O inusitado aqui, em contrapartida, é que o principal acusado de cometer tamanha crueldade, namorado da vítima assassinada com treze facadas, foi absolvido sumariamente na sentença de pronúncia, algo raríssimo em quaisquer situações envolvendo crimes dolosos contra a vida, justamente os de atribuição do crivo do Tribunal Popular. Quando há repercussão midiática e social, então, nem se fala.

Em setembro, o repórter Vinicius Canova escreveu artigo intitulado “Caso Jéssica Hernandes – Os acusados. Os carrascos. O juiz. O ser humano. O inocentado. As reviravoltas”. No texto, abordou a celeuma trazida à baila após a decisão proferida pelo juiz de direito Jaires Taves Barreto, da 2ª Vara Criminal de Cerejeiras.


“Não é porque o sujeito confessou o crime que será condenado, pois existe uma coisa chamada excludente de ilicitude. No Direito, nada é absoluto: nem a vida”, diz criminalsita

Três situações distantes aproximadas apenas pelo cordão umbilical da temática. Afinal, o Conselho de Sentença, composto basicamente por pessoas leigas, teoricamente sem conhecimento técnico na área do Direito, tem ou não condições plenas de definir os rumos de uma vida sob o jugo do malhete?

Imperioso destacar antes de responder ao questionamento que há casos emblemáticos de iniquidade escrachada proporcionados por juízes togados, ou seja, formados e referendados dentro das suas respectivas áreas de atuação. 

No início do Estado Novo (1937-45), historicamente denominado como “A ditadura de Getúlio Vargas”, fora deflagrado também um dos casos mais célebres de injustiça e erro Judiciário do Brasil: a saga penitente dos irmãos Naves (clique aqui e leia a íntegra). 

Outro exemplo bem mais recente é o do índio Galdino Pataxó, incendiado vivo em 1997 por cinco rapazes, entre eles um menor, enquanto dormia em uma parada de ônibus em Brasília, Distrito Federal (DF). 

A juíza, na pronúncia, desclassificou o delito de homicídio doloso qualificado para lesões corporais seguidas de morte, sendo que o Tribunal de Justiça do DF, apreciando o recurso do Ministério Público (MP), manteve a decisão desclassificatória. 


"Comigo não tem circo. O jurado percebe quando o advogado está fazendo presepada ou mesmo situações onde o promotor quer aparecer. Ele sabe diferenciar", assevera promotor do Júri 

Após idas e vindas recursais, finalmente o quarteto que já usufruía da maioridade penal caiu no Tribunal do Júri, sentenciando a trupe em novembro de 2001 a 14 anos de prisão, sentença cumprida deficientemente através de cotidiano cheio de regalias e amontados de vistas grossas. 

A rapaziada tentou justificar a barbárie à época: eles imaginavam que Galdino seria um mendigo e informaram que “apenas” queriam brincar com ele.

Esses arquétipos demonstram, no mínimo, que tecnicidade não vincula, necessariamente, fato concreto à decisão coerente.  Verdade seja dita, este nexo causal é observado regularmente no ímpeto de imperitos que atuam corriqueiramente no Conselho de Sentença. 


“Você provavelmente será condenado”, informou defensor público a assistido absolvido por clemência em Vilhena (Foto: arquivo pessoal)

Voltando às situações rondonienses. Viecili conversou com o jornal eletrônico Rondônia Dinâmica revelando como seu cliente, um réu confesso, fora absolvido mesmo admitindo o crime, expondo minúcias do processo e suas perspectivas acerca do desfecho; além disso, o criminalista Alexandre Batista, professor universitário, complementou e expôs considerações sobre o Tribunal do Júri e os desdobramentos infligidos pelo Judiciário a todos os atores envolvidos. 

O defensor público George Barreto Filho relatou exclusivamente e com riquezas de detalhes pormenores a respeito da absolvição por clemência concedida no seio dos rincões vilhenenses, onde tanto assistido (nome técnico dado a quem recebe assistência da DPE) quanto ele próprio se surpreenderam com o resultado final. 

Por fim, o promotor de Justiça Ademir José de Sá, que trabalha na Capital, esmiuçou sua percepção como integrante do Ministério Público de Rondônia (MP/RO) em relação às atuações da instituição e exprimindo opiniões no tocante à atmosfera jurídica.

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Batista recorda situação em que promotor mostrou uma arma no Júri para intimidá-lo

O professor criminalista especialista em Tribunal do Júri relata, numa longa conversa – e de maneira pedagógica – como funciona a logística voltada ao instituto. Ele participou de mais de cem e, depois disso, parou de contar.

É possível absolvição de réu confesso? E por clemência? O denunciado pode ser absolvido sumariamente pelas próprias mãos do juiz?

Todas essas perguntas são respondidas e o causídico vai além ao apresentar críticas à imprensa em relação ao sensacionalismo panorâmico em torno de casos de ampla repercussão; quais foram e ainda são as consequências de um episódio onde um promotor mostrou uma arma em Plenário a fim de intimidá-lo e muitas outras explicações.




Promotor que atua no Júri é contra a pena de morte

Novembro é o Mês Nacional do Júri. E Rondônia tem o que comemorar em termos de eficiência e celeridade, de acordo com o promotor de Justiça Ademir José de Sá.

O próprio MP/RO indica: só na Comarca de Porto Velho, de 2013 a 2017, ocorreram 602 sessões.

“Não estou a par de dados completos, mas uma estatística posso mencionar. Não há Tribunal do Júri no Brasil – reconhecido em estudos apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que julgue tão rapidamente quanto o de Porto Velho”, aponta.

O promotor diz que há casos ocorridos este ano e que já foram ou serão levados a Júri ainda em 2017.

 “Não há. Não há [Júri mais rápido que o de Porto Velho]”. Em São Paulo, para estabelecer parâmetros, segundo de Sá, um julgamento não ocorre em menos de cinco anos em média.

“E não se faz julgamento no Tribunal do Júri de réu preso em menos de dois anos. Nós julgamos com muita celeridade”, indica.

Para o representante do MP/RO, se a Polícia Civil (PC/RO) agisse com a mesma rapidez na investigação de casos que não são de flagrantes, a Capital teria de suportar pelo menos mais cinco Tribunais do Júri para dar conta da demanda.

Infelizmente, lamenta o membro do parquet, o que é levado a julgamento, a maior parte, tem relação com casos de flagrantes e outros mais específicos apurados rapidamente.

A PC/RO quando apura, ainda segundo o promotor, apura rápido. “E se não apurou nos primeiros meses não apura mais, depois a prova enfraquece”. A prova do Júri não é feita em Juízo, ela é produzida na investigação, norteia.

“Uma investigação bem feita produz um bom resultado”.

A respeito de situações como de absolvição por clemência, informa:

“Aceito o resultado de qualquer tese que seja colocada em Plenário desde que não contrarie a prova do processo. A clemência nunca é contrária à prova do processo porque admite a existência do fato e a autoria. Não se pode pedir perdão para o inocente. Pede-se perdão para o culpado. E o perdão é um instituto jurídico inerente a este”, disse.

O promotor revela não recorrer de decisões do Júri se a tese levantada pela defesa fora inserida no processo amparada pela prova. A essência é essa: acusação e defesa argumentando de forma contraposta e o jurado decidindo por um ou outro. Não há meio termo.

 “A inteligência do jurado não pode ser menosprezada. Quem menospreza a inteligência do jurado quebra a cara”, enfatiza.

Na maioria dos casos – complementa – a vítima tem participação no evento, na própria morte. E dentro dessas situações, ela é quase ou tão culpada quanto o réu, que a executou. A diferença é que a vítima morreu.

“E o que nós temos que proteger aqui é o direito à vida. Então se dois homens brigam ambos são responsáveis, mas um mata o outro e o que matou tem de responder”.

Os julgamentos proferidos em Porto Velho são os mais rápidos do Brasil, proporcionalmente falando – conforme reiterado por Ademir José.

“Como regra, os julgamentos aqui são muito rápidos. Lógico que a população irá apontar casos onde não houve um desfecho satisfatório”.

Na visão do homem público, uma coisa é levar um caso a julgamento do Plenário do Júri; outra, completamente diferente, é apurar o crime. A apuração do crime é atribuição da PC; levar o sujeito ao Plenário do Júri é incumbência do MP.

“Quando o julgamento demora mais isso decorre da ação da defesa, que busca mediante recursos previstos na lei modificar algumas decisões do juiz. Mas isso é uma demora decorrente de um ato legal de defesa,  e disso não podemos reclamar. O direito de defesa é inerente ao estado de Direito, o Estado Constitucional”, assevera – e continua – “dos casos apurados pela PC a população com certeza não encontraria argumentos para reclamar dos resultados”.

O MP/RO neste contexto – reforça – não tem falhado com a sociedade, dando o melhor de si com “resultados muito bons”. Infelizmente, lamenta, “a gente percebe que isso não tem refletido de maneira significativa em sociedade, porque as pessoas continuam cometendo crimes o tempo todo. Me parece mais um problema social do que jurídico”.

É uma questão atinente à execução penal. "Nós temos promotorias específicas na Capital e no interior atuando nessa missão. Tenho colegas devotados à causa no sentido de que o réu cumpra sua pena de forma integral, como a lei determina”. Para isso, imprescindível que, ao mesmo tempo, seja concedido ao condenado todos os direitos que ele tem à disposição.

Para de Sá, não se pode pensar em ressocialização se houver supressão de direitos. Às vezes a população vê essa concessão como regalia.

“O que digo em quase todos os Júris aos jurados? ‘O que nos diferencia daquele que está sentado na cadeira de réu é que nós cumprimos a lei e ele não. Por isso ele está sentado lá e nós o estamos julgando. O que vai nos diferenciar de um sujeito condenado também é que iremos conceder a ele todos os direitos que não foram concedidos à sua vítima. Se nós fizéssemos o mesmo que ele fez nos igualaríamos. Neste caso, pra que Justiça?’”, indaga.

Valores morais e religiosos fazem com que o promotor rechace de antemão quaisquer possibilidades de concordar com a pena de morte, fosse possível admiti-la no País.

 “Minha convicção não admitiria de forma alguma a pena de morte. Mas não sou contrário, absolutamente, por exemplo, à prisão perpétua”.

Ela indica que certos casos mereceriam avaliação diferenciada tanto do legislador quanto do julgador.

“A pena de morte não. Ela não resolve nada. O castigo, a retirada do convívio social de pessoas comprovadamente irrecuperáveis, embora isto seja difícil de avaliar, sim”.

Há pessoas que, de acordo com Ademir José, não nutrem a menor disposição de mudar de vida. E se elas continuam a cometer crimes graves sempre que postas em liberdade, matando gente inocente, “então é interessante que sejam segregadas. Em uma condição digna, né? Presídio decente, apartadas da sociedade, sem tirarmos delas direitos fundamentais como o tratamento de saúde”.

Logo, em casos extremos, “a prisão perpétua não seria de todo indefensável, é algo a ser discutido e não vejo por que não”.


Toledo se surpreendeu com resultado final: ele esperava condenação com pena mais branda

O homem defendido por Viecili, segundo este, havia sofrido agressões patrocinadas pela vítima, que o acertou com uma paulada na cabeça, quase arrancando sua orelha. 

Durante cinco meses logo após a briga, todas as vezes em que eles se encontravam havia ameaças recíprocas. Um dizia que mataria o outro. O cidadão que levou a pior seria usuário de drogas e morava no Bairro Lagoinha, frequentando as bocas de fumo e dizendo a todos os traficantes e demais viciados que mataria o réu. 

No dia da morte, o relógio marcava mais de 02h e a vítima caminhava pela rua acompanhada de mais dois usuários de entorpecentes quando o réu passou por eles de moto. 

Houve provocação. 

O cliente de Viecili fora até a residência onde morava, pegou uma arma e voltou para conversar com o detrator. A vítima, agachada, levantou levando a mão à cintura. Quem disse isso, de acordo com o advogado, foi a dupla que o acompanhava e "para os jurados isso foi suficiente para que o meu cliente sacasse a arma e atirasse. Dentro do Direito, materializa-se a legítima defesa putativa, quando você imagina, por exemplo, que o cidadão irá sacar a arma e disparar. Por conta disso age antes".

Já existia uma lesão corporal registrada pelo confronto entre os desafetos, somando-se cinco meses de ameaças trocadas e desbocando no enfrentamento derradeiro. Na briga, o homem assassinado leva a mão à cintura como se fosse sacar um revolver ou puxar uma faca e acaba morto. Para os jurados, o caso se encerrou aí. 

Foi o suficiente.

Mas ao buscar a arma em casa, o Conselho de Sentença não poderia entender premeditação por parte do réu?

Giuliano informa que a defesa trabalhou duas teses. Uma, a legítima defesa, que absolve por completo; e a outra, o homicídio privilegiado, característica dentro do Art. 121 (homicídio), paragrafo primeiro. Esta última versa que, aquele que agindo por violenta emoção diante de injusta provocação da vítima, comete homicídio privilegiado e tem a pena reduzida. Ou seja, quando o réu passou de moto, após cinco meses de ameaças, percebe-se a agressão iminente, que poderia ocorrer a qualquer momento. E ocorreu.

 "A violenta agressão da provocação fez com que o meu cliente fosse buscar a arma e se direcionasse à vítima pensando 'hoje eu vou resolver, ou vou matar ou vou morrer'". 

Para a defesa, a melhor opção foi insistir de forma mais enfática na tese de homicídio privilegiado, ainda que a de legítima defesa também fosse apresentada com veemência, embora ligeiramente desacreditada. 

"Assim haveria uma condenação, mas com pena reduzida. Só que os jurados entenderam que era melhor absolver. Para nós foi uma surpresa, porque geralmente vai para uma pena menor. A absolvição foi uma sentença que nos surpreendeu", relata. Valeu neste episódio o ditado da política, segundo Toledo, a velha máxima: o voto é uma caixinha de surpresas. A acusação recorreu, não concordou com o Júri e apresentou recurso. E aí, existe absolvição de réu confesso? Existe sim! E aqui em Rondônia está bem exemplificada.


Defensor Barreto, de Vilhena. A Defensoria Pública de Rondônia e o trunfo da absolvição por clemência / Foto: DPE-RO

Segundo investigações, A.F. teria golpeado dois homens com um facão em outubro de 2008, após uma discussão envolvendo consumo de bebidas alcoólicas. O acusado fugiu e foi preso em Alta Floresta do Oeste em novembro de 2016, levado, então, à Casa de Detenção vilhenense.

Mesmo com o argumento da defesa, o caso de A.F. foi levado a Júri, após a conclusão do juízo da 1ª Vara Criminal de Vilhena pela materialidade do ocorrido e pelos indícios de autoria.

Segundo George Barreto, defensor público que o assistiu no processo, este e outras duas pessoas estavam numa fazenda, inclusive trabalhavam lá. Houve um desentendimento entre eles e o réu acabou matando os companheiros de serviço. Eles eram amigos, aparentemente – tinham boa convivência. Mas, mais uma vez por conta de uso excessivo de substâncias entorpecentes, cachaça, no episódio específico, uma briga envolvendo o trio fora desencadeada.

O autor do crime partiu pra cima da dupla porque havia sido desacatado e agredido, “nada que justificasse a reação, a violência da resposta”, conta Barreto.

“Por isso mesmo eu não defendi legítima defesa”, complementa.

Tanto na audiência que precedeu o Júri quanto no Plenário, o idoso afirmava não se recordar dos fatos, do que havia ocorrido.

“Ele falava: ‘Eu não me recordo do que aconteceu. Porém se estão dizendo que eu fiz, fui eu”.

Sustentava os dizeres porque havia uma testemunha que presenciara o início das agressões por parte dele contra as vítimas, à ocasião das mortes, mas que acabou fugindo do local sem observar o desfecho da trama.

“Ele contava e insistia em seus depoimentos não se recordar de como teria chegado ao local do crime. Nem mesmo se havia atentado contra aquelas pessoas, mas, existindo testemunha afirmando que este o fizera, aceitava a condição e as punições. A confissão dele era nestes termos”, recorda.

No banco dos réus estava um senhor com sessenta anos ou mais que nunca havia praticado em toda a sua vida nenhum tipo de delito, ainda mais algum que fosse tão violento quanto na situação envolvendo as duas execuções.

A absolvição sumária ocorreu por um somatório de circunstâncias.

 Antes de o Júri iniciar o defensor chamou o assistido para conversar.

Disse: “Olha, você tem duas opções. Ou mantém sua versão e não confessa de forma total e provavelmente será condenado sem a atenuante da confissão; ou você confessa, certo? Aí você obtém, neste último caso, sua atenuante sem que a juíza considere que a confissão foi qualificada”.

Na hora do interrogatório a juíza questionou o réu sobre o que teria ocorrido e ele acabou confessando.

A magistrada perguntou: “Mas alguém falou pra você confessar? Durante o tempo inteiro você dizia que não se lembrava...”.

“Aí ele apontou para mim, como se eu tivesse mandado confessar, quando na realidade não mandei”, conta o defensor.

Eram as opções que expusera a A.F. pouco antes de ser interpelado pela juíza.

“E isso eu expliquei ao Conselho de Sentença. Eu tinha de expor as alternativas que o réu tinha pra se defender. O julgamento continuou normalmente, o promotor de Justiça pediu pra retirar a qualificadora, pois acreditava que teria havido privilégio, então fora um Júri relativamente tranquilo”, acrescenta.

Só que o profissional havia acabado de receber a notícia de que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) teria considerado –  justamente naquele momento – válido o julgamento baseado na clemência, ou seja, sem nenhuma tese específica de defesa como a própria legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular de direito e estrito cumprimento de dever legal que são, por excelência, as excludentes de ilicitude.

“Usei a decisão no julgamento. Como um dos princípios constitucionais do Tribunal do Júri é a soberania dos vereditos, eles não precisam ser motivados, justificados. É um julgamento por livre convencimento imotivado. E o jurado tem essa prerrogativa dentro da sua soberania de absolver ou condenar sem qualquer motivo explícito”, disse.

Então, munido desta informação, Barreto explicou aos jurados: “Olha, não  existe tese defensiva. Não estou aqui para menosprezar a inteligência dos jurados e nem no intuito de agir como estelionatário jurídico. Estou aqui para informar que existe a possibilidade de absolvição de um senhor que nunca cometeu crime até então e é uma pessoa com problemas cognitivos, que sequer sabe a data de nascimento, endereço, nome da mãe”.

Era, no fim das contas, um julgamento de alguém com problemas agravados pelo uso constante de bebida alcoólica. Não haveria nenhum tipo de mudança que pudesse ser acarretada na vida desse cidadão se fosse preso por esse erro de percurso. 

“Provavelmente não cometerá outro crime violento porque já passou boa parte de sua vida sem fazê-lo. Com isso, os jurados votaram pela absolvição para promover clemência a um homem que não era , não é e provavelmente não será um criminoso contumaz. Os antecedentes dos réus ou sua ausência contam muito para a absolvição de alguém no Júri. Aparentar ou não pertencer ao mundo do crime, idem”, finaliza.

O famigerado Caso Jéssica é exemplo de algo raro, possível, mas dificílimo de ocorrer. Isso porque adornado de crueldade ímpar que rapidamente o fez se espalhar. Inicialmente, na pequena cidade de Cerejeiras; logo mais, ganhando as páginas dos jornais brasileiros por conta da repercussão social desencadeada.

Jéssica Moreira Hernandes, adolescente de 17 anos, fora cruelmente executada com mais de treze facadas. O principal suspeito, logo de cara, foi apontado: Ismael José da Silva, servidor público – tachado como ciumento e possessivo.

Os noticiários regionais passaram e publicar em profusão. Ismael da Silva haveria de ir ao Júri e ser condenado – isso porque escapou da morte quando a sociedade tentou, sem sucesso, fazer justiça (?) com as próprias mãos.

Leia
Editorial – O que podemos aprender com a reviravolta e a brutalidade coletiva do caso Jéssica Hernandes?

Pois bem.

Na sentença de pronúncia o juiz Jaires Taves Barreto o absolveu sumariamente, destoando às exigências populares e afrontando as necessidades das manchetes. O magistrado, no entanto, encaminhou Diego de Sá Parente, primo de Ismael, à apreciação dos jurados no Tribunal Popular.

O representante do Poder Judiciário, em vez de fazer o mais fácil e pronunciar a ambos, se esquivando do brado público a exigir cabeças rolando imediatamente, e ainda deixando o mérito para o Júri, agiu como verdadeiro e sublime arquétipo daquilo que deveríamos experimentar como Justiça. Taves Barreto não defendeu. Taves Barreto não atacou. Taves Barreto foi o que provavelmente as pessoas não esperassem dele num caso permeado pelo incêndio do clamor popular: apenas, e, sobretudo, um juiz de Direito. De suas mãos saíram ensinamentos didáticos rompidos às entrelinhas informando que o papel da Justiça é ser justa: se não fora convencido e sequer teve dúvidas nem mesmo poderia escorar-se ao princípio in dubio pro societate (na dúvida, favoreça a sociedade) para justificar a pronúncia do companheiro de Jéssica; logo, convicto da não participação de Ismael no intento criminoso, absolveu sem titubear. – Trecho da publicação “Caso Jéssica Hernandes – Os acusados. Os carrascos. O juiz. O ser humano. O inocentado. As reviravoltas”

A decisão, contestadíssima, é alvo de recurso por parte do MP/RO, que tem convicção da participação do ex-companheiro no assassinato. A apelação, até o fechamento desta reportagem, não fora apreciada pelo Tribunal de Justiça (TJ/RO).

O Rondônia Dinâmica espera que as posições apresentadas suscitem amplas reflexões acerca de um dos institutos mais antigos e respeitados não só do ordenamento jurídico pátrio, mas também mundial – provavelmente a máxima expressão do que deva ser a democracia.

Que eventuais concordâncias ou mesmo divergências possam corroborar sobremaneira com debates mais profundos e diálogos comprometidos voltados à cidadania, criando maiores condições de inserir cada vez mais a população a temas técnicos considerados distantes do habitual justamente por conta do viés científico. A ponte da Justiça com o povo já está em plena construção: eis aqui mais um tijolo no alicerce.

Autor / Fonte: Vinicius Canova / Rondoniadinamica

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